Olá a todos, meus caros leitores.
Hoje o tema que vos trago neste blog destina-se mais à vossa reflexão pessoal, e talvez também zelar para que possam estar mais atentos e informados quando navegarem por esse mar de informação que é a internet. E hoje, 24 de novembro, é o Dia Mundial da Ciência, pelo que queriam dia melhor para publicar este artigo?
No passado dia 15 de novembro, tive oportunidade de apresentar uma comunicação sobre Desinformação na Era Digital. E por paradoxal que seja, numa altura em que temos tanto acesso à informação, interrogo-me se não estamos mais desinformados do que antes.
Já perdi a conta o número de pais e mães que vejo em consulta completamente convencidos de algo que viram na internet que eu sei ser perfeitamente falso sobre a saúde dos seus filhos.
Não há dúvida nenhuma que a era digital veio facilitar o acesso à informação, mas trouxe-nos também o desafio de distinguir o que é verdadeiro do que é falso em muitas áreas, sendo uma delas a saúde. Mais devo ainda dizer que as crianças são sempre um público mais vulnerável, e com elas as suas famílias, sendo que neste contexto a desinformação pode ter consequências verdadeiramente graves para a sua saúde.
A forma como se espalha a desinformação na era digital é muito rápida. O uso das redes sociais veio trazer um potencial elevado para a “viralização” de um conteúdo – e a verdade é que qualquer pessoa pode criar virtualmente qualquer tipo de conteúdo, e partilhá-lo. Diz-se que um conteúdo viral é aquele que alcança rapidamente milhares de pessoas, por ser compartilhado rapidamente, e ganha grandes proporções. Quanto maior a emoção desencadeada por este conteúdo (e particularmente, emoção negativa, como raiva ou medo) maior o potencial de virilização. Afinal, que é o ser humano senão um ser de emoções fortes?
Um dos exemplos mais flagrantes foi o que teve lugar durante a época da pandemia COVID19, quando surgiram as vacinas – logo seguidas por uma corrente de desinformação, como o estarem ligadas à infertilidade, ou ainda aumentarem a probabilidade de cancro. Por muito que ambas estas situações fossem desmentidas pela comunidade científica, a desinformação difundiu-se de forma fulminante, levando alguns (ainda hoje) a acreditarem em alguns destes pressupostos. Outro exemplo é a teoria da conspiração das grandes farmacêuticas, “carinhosamente” apelidadas de “Big Pharma”. Muitos acreditam que estas companhias detêm a cura para o cancro, e apenas não a divulgam de forma a poderem vender medicação (como se o cancro fosse uma patologia única, e não tivesse a complexidade que tem).
Mesmo dentro deste grande mundo da desinformação, interessa conhecermos as formas distintas como se propaga:
1) As fake-news: informações fabricadas que procuram imitar o conteúdo jornalístico, mas sem seguir os processos editoriais que garantem a precisão e credibilidade;
2) Desinformação: informação intencionalmente falsa, para enganar;
3) Informação “mal interpretada” (“misinformation”): informação falsa ou enganosa, não intencional.
Daqui importa inferir que nem tudo é intencionalmente falso – muitas vezes os dados científicos são complexos, e distorcidos ou mal compreendidos por quem os relata.
Um dos exemplos deste tipo de informação “mal compreendida” diz respeito à associação entre o açúcar e a hiperatividade infantil. Esta relação surgiu quando, no início dos anos 70, o médico Benjamim Feingold sugeriu que certos aditivos alimentares (corantes e conservantes) poderiam piorar sintomas de hiperatividade nas crianças. Como muitos doces possuem estes componentes, o açúcar foi logo “crucificado” pelos meios de comunicação social, mesmo após vários estudos posteriores confirmarem a ausência de relação entre ambos.
Outro exemplo é o do leite e os seus efeitos inflamatórios. Esta associação pensa-se ter resultado de uma miscelânea de ideias veiculada por influenciadores e “especialistas” em saúde alternativa, amplificando o medo da população relativamente à doença crónica. O pressuposto é de que dietas ricas em gordura saturada podem aumentar a inflamação em pessoas com doença metabólica ou auto-imune. Então, a forma “simplista” de ver as coisas é, como o leite é rico em gordura saturada, automaticamente é inflamatório – e já não se restringe a uma dada população, mas sim a todos os indivíduos. Para além da “confusão” que se gera relativamente a verdadeiras doenças como a alergia às proteínas do leite de vaca, ou a intolerância à lactose. Tudo parece a mesma coisa, na cabeça do indivíduo comum. Só que não é.
Quanto ao papel dos influenciadores e das “autoridades” em saúde sem formação adequada, deixo-vos o caso flagrante de Belle Gibson. Esta influenciadora australiana alegava ter curado o seu cancro cerebral com dietas naturais e tratamentos alternativos.
Fez uma fortuna a publicar livros, e até Apps. Até que se veio a saber que nunca tinha tido cancro, e acabou por ser condenada pela justiça. O perigo? Que muitas pessoas abandonaram os tratamentos convencionais dos seus cancros em busca de “métodos alternativos” sem evidência nenhuma. Pessoas morreram por causa desta influenciadora.
Em pediatria, também existem exemplos concretos de desinformação. Um deles, por exemplo, é o de que os antibióticos curam as constipações. De onde surgiu esta noção? Não foi apenas um fator isolado. Na realidade, a diferença entre infeções virais e bacterianas não é conhecida por grande parte da população. Por outro lado, o “milagre” do antibiótico é relativamente recente – antes da sua existência, morriam milhões de pessoas por infeções bacterianas que hoje tratamos com facilidade. Isto leva a que os pacientes exerçam pressão sobre os médicos para a prescrição destes medicamentos, e ainda piora mais pelo facto de existirem infeções víricas que depois se complicam com infeções bacterianas, e que no início não precisavam de antibiótico, e quando chegam ao último médico a ver, este é o “salvador”, pois curou a doença com o... antibiótico (que não era preciso antes).
As terapias milagrosas para doenças crónicas são outro capítulo neste área. Falo-vos de dietas restritivas para tratar/curar o autismo (com base no uso da dieta cetogénica em casos específicos de epilepsia grave), ou da oxigenação em câmara hiperbárica para o tratamento da paralisia cerebral. São pseudotratamentos com risco em saúde para as crianças (défices nutricionais) e que levam a gastos exorbitantes das famílias que não olham a meios para perseguir uma esperança... falsa.
Não é fácil combater a desinformação. Sabem o que é o viés da confirmação? É exatamente aquilo que nos leva a procurar “provas” para algo em que já acreditamos previamente. É muito difícil mudar ideias, ou mentalidades.
A educação da população e a literacia em saúde são os focos principais da atuação dos profissionais de saúde, e existe um claro benefício em usar os meios em que circula a desinformação para disseminar o conhecimento. No caso da pediatria, existem já muitas páginas de colegas pediatras que se dedicam (muitas vezes em sacrifício do seu tempo pessoal) a esta educação em saúde.
( e muitos outros colegas, que merecem o meu e o nosso agradecimento)
Há que focar nas escolas, e nas famílias, como os recetores primordiais desta informação, e ensinar formas de avaliar a qualidade das fontes de informação. Vários organismos públicos dedicam-se a divulgar critérios simples que nos ajudam a perceber como identificar uma fonte como confiável, antes de republicar informações.
A desinformação é, hoje em dia, uma realidade que exige uma abordagem proativa da parte das estruturas responsáveis pela saúde e educação da população, bem como dos profissionais de saúde. Na era digital, uma verdade repetida pode parecer falsa, e uma mentira repetida pode parecer verdade. Cabe a nós, profissionais de saúde, defender a verdade e proteger a saúde dos nossos pacientes.
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