Cada vez fico mais preocupada com o sentido desta nossa “sociedade civilizada”, e eu quando fico preocupada, obrigo-me a um sem número de reflexões que se vão encadeando, e frequentemente só terminam quando as consigo colocar em “papel” (era papel, era, antigamente...). Acho que funciona quase como uma catarse para mim. Escrever não significa que alguém leia, nem presumo com o que escrevo fazer vossas as minhas reflexões, mover mundos ou montanhas, aliar-vos à minha “doutrina” pessoal, ou impor as minhas ideias como mais válidas que as vossas. Isto quando falamos de ideias, claro. Este blog permite-me um pouco isso. Sair da carapaça do que a Pediatra “recomenda” e partir para o ser também pensante que sou (ou espero ser, embora haja dias mais difíceis).
Comecei a semana a querer falar sobre chupetas. Porque é um tema recorrente nas consultas de pediatria, porque causa muita dúvida aos pais, porque há controvérsia, e porque dentro da controvérsia há sempre lugar para opiniões, que por muito válidas que sejam, não devem ultrapassar em saúde as recomendações.
Em pouco tempo, já tinha sido acusada de “a senhora sim vende a sua crença não estando aí para a saúde das crianças dos outros.” Foi tão simples dizer isto como rápido é de postar numa rede social, já viram? E aqui chegamos ao cerne da questão. Qual é efetivamente a minha crença, vocês sabem? Não sabem. Porque eu não disse. Nem tenho que dizer. Tento não misturar crenças com as orientações que dou, embora possa ser acusada, como qualquer um, de deixar que a minha experiência pessoal influencie o meu comportamento (mas isso é a mais básica das noções que temos de ter em comportamento humano, que as associações que fazemos são automáticas de acordo com as nossas experiências).
Enquanto pediatra, já me vi confrontada com muitas situações perturbadoras. E posso dizer que, francamente, a chupeta não se encontra nem a milhas da mais leve delas. Não deixa de ter o seu papel na saúde infantil, mas é algo com que consigo viver bem. O que a mim me perturba, francamente, tal como escrevi? Crianças vítimas de tráfico sexual ou abuso. Maus tratos. Negligência. Desigualdade de direitos, desigualdade no acesso à educação e à saúde. Corrupção. Iliteracia. Não a chupeta, francamente.
E daí o título deste post. A tirania da “mãe perfeita”. Já perdi a conta ao número de mães (e pais por arrasto, também) que chegam à minha consulta desesperados. Porque por algum motivo não conseguiram (já nem vou trazer aqui à baila aquelas mães que não desejam) amamentar, e se consideram as piores mães do mundo. Porque ao longo de meses, senão anos, martelaram nas suas cabeças que uma boa mãe é aquela que dá de mamar ao seu filho. E criaram na sua cabeça o cenário idílico do recém-nascido que rapidamente agarra na mama da mãe e “faz um click” e de repente é tudo perfeito, e voilá, está garantida uma amamentação de sucesso e uma vinculação para todo o sempre. Pois, só que às vezes NÃO. E se é o papel do profissional de saúde estar habilitado para aconselhar e promover a amamentação, dar suporte e saber resolver potenciais problemas, também é o seu papel reconhecer a fragilidade e permeabilidade daquela recém-mamã à crítica e julgamento alheio. Devemos também nós contribuir para isso? Não há pediatra que não defenda o aleitamento materno. Nem poderia ser de outra forma. Temos, contudo, de saber reconhecer uma altura em que simplesmente não dá mais. E não demonizar o leite de fórmula que felizmente está disponível para estas situações e outras em que, por exemplo, a amamentação está contraindicada. Felizmente temos alternativa, e se é por anos e anos de investigação da indústria farmacêutica, que seja, ainda bem, investiguem mais por favor até ao limite do que é possível chegar de proximidade em relação ao alimento ideal, que é o leite materno. Felizmente já não temos só disponível o leite de vaca, ou cabra, ou o que seja, em natureza. Felizmente já evoluímos um bocadinho desde então. Se não tivesse havido investigação neste sentido, muitas mais mazelas em saúde teríamos a lamentar certamente. Portanto, nem tudo é mau.
E isto é extensível à chupeta. Poderei eu, ou alguém, criticar uma mãe ou um pai por terem considerado que a chupeta era a melhor opção para eles? Tenho eu esse direito? Eu ou qualquer um outro? Após noites e noites de exaustão, como vejo, em que finalmente se vê uma luz no túnel quando o bebé acalma/adormece com a chupeta (e é se isso acontece...) serão aqueles pais piores pais?
Lamento. Não acredito nisso. O universo do amor por um filho vai muito além da mama, da chupeta, ou de outras coisas em particular. Aonde é que, no caminho da nossa sociedade, nos esquecemos do respeito pela realidade do outro, da empatia perante as suas dificuldades, da compreensão pelas suas decisões? São as SUAS decisões, e não as nossas. É a SUA realidade, não a nossa. E quando surgem nas redes sociais as fotografias, e os “posts” de uma “vida perfeita” em uníssono mãe-pai-bebé, são apenas isso, fotografias e “posts”. E se corresponde à vossa realidade – parabéns. Eu cá vou continuar na minha prática a atender e a procurar ajudar o mais possível as mães reais. Aquelas que todos os dias procuram fazer o melhor por si e pelos seus filhos, mesmo por vezes não tendo a certeza de estar no caminho certo. Aquelas que têm dúvidas, mas acreditam que a solução está no seu coração, e reconhecem que há momentos de fraqueza, porque são humanas. As que choram. As que desesperam. Aquelas mães que não são, tal como eu não sou, perfeitas. Porque as que são “perfeitas”, essas não precisam da ajuda de ninguém.
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