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Foto do escritorAlexandra Luz

Crónica de (mais) uma morte evitável


Nesta semana fui surpreendida pela notícia de que ainda mais uma criança tinha morrido, aparentemente na sequência de maus-tratos. Infelizmente no meu trabalho é algo com que me cruzo com alguma frequência, não querendo com isto eu dizer que esteja “habituada” a tal, ou menos sensível ao facto. Mas é uma realidade que me está bem presente, e ali as notícias davam ainda mais um novo “velho” caso de maus-tratos infantis.

Antes de continuar, queria contar-vos uma história. A história de uma urgência, há alguns anos atrás, em que uma mãe traz o seu bebé de 10 meses, por uma queda da cama dos pais. Quando entra na triagem, o enfermeiro de serviço traz ambos imediatamente para dentro, para a sala de tratamentos, e eu (na altura era interna de Pediatria) e um pediatra mais velho recebemos a criança. A mãe deixa-a na maca, sentada, e eu olho para ela. Ouço por trás a mãe dizer “pois, estava na cama, rebolou, e caiu com a cabeça no chão, ficou todo marcado”. Eu estou, naquele momento exato, a olhar para aquele menino. Os bebés pequenos têm, habitualmente, uma cabeça bastante maior do que o resto do corpo, diferença essa que com o crescimento vai-se atenuando. Mas aquele bebé era quase só cabeça. Uma cabeça que ainda mais desproporcionada parecia por estar marcada de tonalidades daquilo que só podia ser uma crueldade indescritível. Roxo, verde, amarelo, vermelho... hematomas de vários tamanhos, contornos e cores, em múltiplas localizações. Caíra ao chão, ou que chão teria caído em cima deste bebé? Nada do que a mãe dizia justificava aquele horror. E a forma como o dizia... como se os olhos dela não estivessem a ver a mesma imagem do que os nossos. E o que dizer daquele bebé? Olhava-me de volta. Com um ar que eu nunca tinha visto antes, e digo-vos que nunca voltei a ver desde então. Geralmente quando nos aproximamos de uma criança daquela idade, principalmente quando calha que lhe temos de fazer algum procedimento que não é lá muito agradável, é típico o bebé chorar, dirigir os braços para a mãe, procurar proteção e conforto. Aquele bebé tinha o olhar de quem não tem esperança. Não era um olhar desconfiado, nem sequer era um olhar de medo. Era um olhar apático, vazio, triste, e quando lhe fizemos análises, soltou apenas um pequeno gemido, como se ainda assim a agulha que o espetava fosse “apenas” mais uma dor. Não estendeu os braços para a mãe, nem a mãe se aproximou para o enlaçar e amparar. Acho que ele simplesmente já sabia que, conforme tudo o que porventura conhecia até então da vida, não tinha direito a mais nada. E é aquele olhar, e aquela cabeça, que ainda até hoje espreitam em alguns pesadelos do meu sono.

Esta semana morreu a Jessica, de 3 anos. Os dias foram passando, e foram-se conhecendo pormenores do contexto da morte desta criança. Partindo de uma morte por maus-tratos infantis, desenrola-se toda uma história de tortura à qual a criança é sujeita, de um possível abuso sexual, de bruxaria e dívidas... e eu penso, tal como tantas outras pessoas que já assim o manifestaram, como é que isto é possível? A crueldade (haverá palavra ainda mais pérfida que esta? É que crueldade sinceramente não me parece nem de perto nem de longe má o suficiente), volto a dizer à falta de melhor, a crueldade com que pessoas que andam nas mesmas ruas do que os outros são capazes de infligir torturas diversas a uma criança... é-me incompreensível. É como se me gritassem numa língua profana estrangeira, e as palavras não fizessem sentido nenhum. Durante vários dias, aparentemente, aquela criança foi batida, violentada, humilhada, sem que nenhuma alma lhe valesse. O que terá ela pensado durante tudo isto? O que terá ela chorado, sofrido, gritado... e por quem terá ela gritado? Porque, sinceramente, não me parece que ninguém tenha sofrido, gritado, chorado por ela, ou para ela. E como a Jessica, a Valentina. E como a Valentina, a Joana. Jessica, Valentina, Joana. Jessica, Valentina, Joana. Estes nomes não são nomes. São crianças. Eram crianças. Com direito a serem protegidas, amadas, com direito a cócegas de fim de dia, a sorrisos polvilhados de açúcar, ao aconchego de lençóis debaixo do queixo, a bejinhos repenicados no nariz. E o que encontraram dia após dia? Dor. Medo. Solidão. Fome. Terror. Desespero. MORTE. Levou-as, finalmente, a morte, se calhar porque delas teve pena. É que mais ninguém teve pena delas.

Ouvi alguém dizer – “Não se pode prevenir tudo”. Eu concordo. Não se pode prevenir todo o mal que há no mundo. Mas caramba, quando se aceitar uma afirmação destas sem responder que conseguimos certamente fazer muito melhor do que o que estamos a fazer, é porque enfim já não há esperança. Está na altura de parar com isto. Há formas de diminuir a probabilidade de situações desta natureza grotesca acontecerem. Celeridade na deteção de casos de risco, capacidade de intervenção no terreno, suporte e monitorização de famílias de risco. As fracas condições sociais, a pobreza, a falta de educação, são apenas fatores de risco para que situações destas possam acontecer. Aumentam a probabilidade. Mas não são inexoráveis. Que ninguém sacuda a água do capote da sua culpa. Porque não há capote grande o suficiente para assim o esconder.

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