Dia Mundial da Criança, mas não de todas as crianças
- Alexandra Luz
- 1 de jun. de 2022
- 4 min de leitura

1 de junho, calha ser o ano de 2022. Este ano, à semelhança dos que vieram anteriormente, vê celebrar o dia da inocência, o dia da brincadeira, o dia da esperança, o dia dos sonhos... tudo isso e muito mais, reunidos no Dia Mundial da Criança. Hoje por todo o Portugal as nossas crianças abrem os olhos num país em liberdade, num país em paz, num país com acesso à educação, à saúde e ao apoio social. Não é um país perfeito, eu sei. Segundo o Instituto Nacional de Estatística, nos dados de 2020, em Portugal encontram-se 21,6% de crianças e adolescentes em risco de pobreza ou exclusão social, o que equivale a cerca de 290 mil crianças e adolescentes até aos 18 anos. Para o leitor, pai ou mãe que lê este blog, provavelmente não serão as suas, nem as minhas, crianças. Mas serão as crianças de alguém, ou porventura ainda pior, talvez as crianças de ninguém. E isso obriga-nos, enquanto adultos, enquanto membros de uma sociedade, a um travo agridoce na celebração do nosso Dia da Criança.
Portugal, membro das Nações Unidas desde 1955. Em novembro de 1989, a Assembleia Geral das Nações Unidas adotou a Convenção sobre os Direitos da Criança, que o nosso país ratificou em setembro de 1990. No artigo 27º é conferido à criança o direito a um nível de vida adequado ao seu desenvolvimento físico, mental, espiritual, moral e social. É dito caber aos pais a responsabilidade primordial na garantia deste nível, mas é atribuído ao Estado o dever de tomar medidas para que esta responsabilidade possa ser, e seja, assumida. Todos sabemos que pobreza gera pobreza. Quando não temos satisfeitas necessidades básicas como comida suficiente para nos nutrirmos, calor suficiente para nos aquecermos, higiene suficiente para estarmos limpos, seremos sempre menos do que simplesmente humanos. Estaremos preocupados com questões básicas de sobrevivência. E haverá crianças, no extremo, que habitam estas franjas cinzentas do mundo colorido dos meus, e dos vossos, filhos. E o que estamos a fazer, enquanto pais instruídos, enquanto sociedade consciente, enquanto Estado desenvolvido? Não o suficiente, claramente.
Rússia, membro das Nações Unidas desde 1945. Aqui mais ao lado, a uma distância para nós “segura” encurtada pelo poder do digital, revela-se uma outra ameaça aos Direitos da Criança. No mundo dito civilizado, desafiando a regra que diariamente incuto aos meus filhos de que a violência nunca é um recurso utilizado pela inteligência, há crianças a serem vítimas de uma guerra. Refere o artigo 38º que os Estados devem assegurar proteção e assistência às crianças afetadas por conflitos armados. As crianças às quais é brutalmente silenciada a voz de desespero, de incompreensão, de medo, enquanto as suas famílias são divididas em resposta a um conflito de homens. Crianças em risco de vida, que será sempre injustificado, e que parte dos mesmos homens que assinaram um dia atrás um documento em como seriam protegidas e assistidas em caso de guerra. São palavras escritas, ocas, e hoje ainda mais sem sentido. Mais penoso é ainda o relato de crianças torturadas certamente por quem de humano apenas traz o nome. Os animais matam as crias alheias para se alimentarem ou para preservação da espécie. Os animais humanos não só matam, mas ainda torturam as crias alheias pelo sentimento de poder, bebendo do terror dos seus olhos e súplicas vãs.
Afeganistão, membro das Nações Unidas desde 1946. Faz um pouco mais do que um ano que os taliban retomaram o poder, e o conflito na Ucrânia afastou o holofote deste país fragmentado, em que o retrocesso nos direitos gerais da população parece ser o sentido tomado. No artigo 28º é reconhecido à criança o direito à educação, com exercício desse direito na base da igualdade de oportunidades. De novo palavras ocas, vazias de sentido, à medida que crianças e adolescentes, principalmente do sexo feminino, são privadas de liberdade, de ocuparem um lugar em sociedade, de se exprimirem e pensarem livremente. O artigo 34º refere que os Estados se comprometem a proteger a criança contra todas as formas de exploração e de violências sexuais. E assim mesmo, ali temos crianças vendidas pelos familiares para se livrarem da fome, entrando num mundo de servidão humana, de violação diária dos seus corpos e mentes. São brutais as minhas palavras? Nem uma fração da brutalidade com que é arrancada a inocência a estas crianças.
Estados Unidos da América (EUA), membro das Nações Unidas desde 1945. Curiosamente, calha ser um dos países mais ricos do mundo. Vivem o assim chamado “american dream”. Um país de extrema riqueza porta com porta com a extrema pobreza, de disparidades e contrassensos. No artigo 6º da Convenção sobre os Direitos da Criança lê-se que todas as crianças têm o direito inerente à vida, e o Estado tem obrigação de assegurar a sobrevivência e o desenvolvimento da criança. E no passado dia 24 de maio, um atirador de 18 anos entrou numa escola primária e simplesmente matou 19 crianças e duas professoras. Os pensamentos e orações dos americanos foram logo colocados ao lado das famílias enlutadas. Mas a verdadeira reflexão sobre o motivo pelo qual 4.368 crianças norte-americanas entre os 1 e os 19 anos morreram em 2020 por armas de fogo permanece enterrada nos interesses dos adultos, no direito constitucional e enraizado ao porte de arma. Crianças como peões num mundo onde os adultos que assumiram o compromisso de proteger os seus direitos as sacrificam pelo que reclamam ser um direito seu.
Ouço dizer frequentemente que “o melhor do mundo são as crianças”. E estas aqui são verdades talvez inconvenientes na celebração do Dia Mundial da Criança. Que enterramos na vergonha da inação, dia após dia. Hoje haverá balões, gelados, sorrisos, amor no coração de crianças. Mas lembremo-nos, por culpa inteiramente nossa, não será assim para todas as crianças.
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