Hoje trago-vos um artigo sobre um tópico que levanta sempre muita controvérsia, e em que é comum encontrar profissionais relacionados com a área com opiniões e experiências diversas. Ora eu gosto tanto de opiniões como qualquer outra pessoa, mas apetece-me sempre dizer “de opiniões está o inferno cheio”... ou seria de boas intenções? Adiante, que serve o propósito pretendido.
De qualquer forma, como a ciência ultrapassa até a minha opinião (e no meu crer, a vossa também, temos pena...), a verdade é que o assunto do freio da língua se tornou tão importante, que até a própria Associação Americana de Pediatria lançou, em agosto de 2024, recomendações relativas à identificação e orientação de situações de anquiloglossia (o nome técnico do freio da língua curto), e à relação entre esta condição e a amamentação. Verificou-se um aumento exponencial de diagnósticos de anquiloglossia, e de frenectomias realizadas a partir de 2010, (gráficos 1 e 2) e isso não passou despercebido.
Gráficos 1 e 2 - Diagnósticos de anquiloglossia e frenectomias por ano.
Podem consultar o artigo na íntegra neste línk:
Vou passar então a “dissecar” o que se aborda no referido artigo.
1. O que é o freio da língua, e em que situações é que podemos falar de freio curto?
O freio da língua é uma faixa de tecido que une a parte de baixo da língua ao pavimento da boca. Na realidade, a sua presença é útil para estabilizar e auxiliar os movimentos da língua. Contudo, em algumas situações este freio pode ser muito curto ou rígido – condição então que se chama anquiloglossia, ou freio curto da língua (ver figura 1) – o que pode dificultar certos movimentos importantes, como a elevação e a extensão da língua. Daqui resulta que funções importantes da língua – como a amamentação, a fala, ou até a mastigação – possam ser afetadas por alterações no freio.
Figura 1 - Exemplo do aspeto de um freio curto
2. Então e como é que eu sei se o meu bebé tem o freio da língua curto?
Pois, aqui é que começam os problemas. O diagnóstico de freio curto não tem critérios definidos, ou seja, ninguém pode determinar com certeza que um freio da língua é curto. E esse nem sequer é o maior problema – é que mesmo que o freio da língua seja efetivamente curto, isso não significa que haja necessariamente uma complicação – aparentemente mais de metade dos bebés com aspeto clínico de freio curto não tem qualquer dificuldade na amamentação. É aquilo a que na gíria popular chamamos “não é defeito, é feitio”.
3. E a solução do “freio curto” é “cortar o freio”?
Um dos tratamentos do freio curto é a frenectomia - trata-se de um procedimento círurgico para soltar o freio. As técnicas mais habituais são o corte com tesoura, ou o laser. Convém reforçar que é um procedimento círurgico, e se bem que tradicionalmente simples, apresenta como praticamente qualquer outro os riscos de hemorragia e infeção, e os pais devem ser informados sobre alternativas (aguardar evolução sobre vigilância, consultar ou rever com consultor de amamentação). Alguns profissionais recomendam outro tipo de terapias, como fisioterapia, terapia miofascial ou craniossacral, mas a verdade é que são tratamentos caros e não há estudos robustos sobre a sua eficácia. A realização de frenectomias deve ser feita apenas por profissionais certificados para tal, e previamente sujeita à assinatura de consentimento informado pelos pais.
4. Então se o meu bebé tiver um freio curto, tem de cortar o freio, é isso?
Pois, a resposta é NÃO. Como falámos anteriormente, um freio pode ser curto, e o bebé mamar lindamente. Para ser considerada a frenectomia, temos de ter um freio curto sintomático. Ou seja, um freio curto que efetivamente limite a capacidade que o bebé tem de realizar a mamada com eficácia. O mecanismo da amamentação requer uma coordenação entre os movimentos de elevação e extensão da língua, portanto é fácil de perceber que se a língua estiver impedida de realizar estes movimentos, pode haver impacto na amamentação.
5. Isso quer dizer que se o meu bebé tiver um freio curto, e dificuldades na amamentação, tem de cortar o freio, é assim?
Pois, a resposta continua a ser NÃO, nem sempre. Isto porque há várias situações que podem condicionar problemas na amamentação - uma anatomia oral alterada, uma capacidade de sucção diminuída, a anatomia da mama... - podemos dizer que a maioria das situações de dificuldade na amamentação não tem nada a ver com um freio curto. Mesmo o “sinal” mais frequentemente associado ao freio curto, que é a dor no mamilo durante a mamada, não é nada específico deste diagnóstico - sim, até 96% das mães a amamentar referem dor no mamilo nos primeiros dias após o início da amamentação.
6. Agora ficou um bocado confuso. Afinal como é que eu sei se o meu bebé tem um freio curto que precise de ser intervencionado?
Este é que é o ponto importante. A importância de poder confiar no pediatra e no consultor de lactação é essencial para o correto diagnóstico de um freio curto sintomático, o único que precisa de intervenção. O pediatra deve descartar outras causas possíveis para uma má progressão do peso, bem como sintomas de outros problemas ou doenças que possam existir independentemente da presença do freio curto. Deve fazer uma observação cuidada do bebé, relativamente à anatomia facial e oral, e ao freio. E, caso a mãe refira dificuldades na amamentação, recorrer à avaliação de um consultor de lactação experiente na avaliação, e que use ferramentas standartizadas para avaliar todos os aspetos relacionados com a amamentação, que possam ser eventualmente corrigidos, e não só o freio. É feita ainda referência ao papel da odontopediatria, que pode contribuir para o melhor funcionamento desta equipa (pediatra e consultor de lactação).
7. Mas às vezes dizem que se não se cortar um freio curto, ele depois pode ter interferência noutras funções, como a alimentação ou a fala...
Pois dizem. Mas não há evidência NENHUMA que um freio curto num bebé leve a esses problemas. Isso é como dizer que ter estômago pode levar a ter cancro no estômago. Pois pode. Mas a maior probabilidade é que não, e por isso é que ninguém anda por aí a ficar sem estômagos só por causa do que PODE acontecer. Em concreto, caso algum destes problemas (problemas na alimentação ou na linguagem) surja numa criança com um freio curto, tal como para a amamentação, não deve ser deduzido automaticamente que é por causa do freio, e a avaliação feita nestes casos deve ser igualmente global e multidisciplinar.
Pontos-chave:
Nem todos os bebés com freio curto apresentam dificuldades na amamentação.
A frenectomia deve ser considerada apenas quando há impacto real na amamentação, após avaliação especializada e correção de todos os fatores que possam interferir com a mesma.
Não há evidências que sustentem que um freio curto em bebés cause problemas futuros ao nível da fala ou da alimentação.
Com base nas mais recentes recomendações da Academia Americana de Pediatria, é evidente que a presença de um freio curto nem sempre deve ser motivo de preocupação para os pais (nem para os profissionais!). O diagnóstico de anquiloglossia deve ser criterioso e baseado em sinais claros de que o freio da língua está efetivamente a comprometer a amamentação. A frenectomia, por sua vez, não é uma solução universal e deve ser reservada para os casos em que o freio realmente cause dificuldades significativas na amamentação, e que não melhoram com intervenção especializada.
A confiança em profissionais qualificados — pediatras e consultores de lactação — é fundamental para assegurar que o diagnóstico e o tratamento sejam apropriados, evitando intervenções desnecessárias e focando-se na saúde e no bem-estar do bebé e da mãe. O freio da língua curto é uma condição que, na maioria das vezes, pode ser gerida de forma conservadora, sem necessidade de cirurgia imediata.
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