Quando olho para trás, e me apercebo que passaram já quase dois anos sobre o início desta pandemia, quase que não acredito. “Passou tão rápido!”, ouvi dizer esta semana no consultório. E não sei bem se disse, se só pensei, mas estou segura que soltei um sorriso triste – “não passou tão rápido como deveria, nem acredito que vá passar”.
De norte a sul, de novos a velhos, mais doentes ou mais saudáveis, creio que estamos todos para lá de saturados e desgastados com o impacto que um “simples e tão microscópico” vírus teve na nossa vida, não só aqui, mas em todo o mundo. A prova viva de que, por tudo o que a nossa capacidade humana permite, de todas as mentes brilhantes, vergamo-nos ao poder da natureza. Não queria neste artigo trazer para cima da mesa as mortes a COVID-19, que sei que são todas e cada uma delas sem dúvida a lamentar, mas acredito que essas serão talvez a face mais visível dos danos. Também todos temos facilidade em reconhecer o impacto sentido nas nossas relações sociais, na nossa proximidade com a família mais alargada, no nosso contacto com os amigos. Estes parecem ser apenas meros pinos atirados ao chão, tendo bastado um único lançamento para que desajeitadamente todos caíssem. Mas talvez sejam, ainda assim, os mais recuperáveis, de adultos que somos. Contudo, ainda assim digo-vos com sinceridade, no final do primeiro confinamento, quando por algum motivo que já não me lembro bem tive necessidade de sair de casa, dei por mim a pensar num exercício mental elaborado – “o que é que eu tenho de vestir para sair de casa?”. De tão habituada a estar de fato de treino, pijama e afins, foi uma verdadeira olimpíada mental equacionar que para usar um vestido, tinha que vestir collants... o que mostra que umas poucas semanas têm o poder de “apagar” experiências e vivências. E talvez ainda, de mostrar o quão moldável o ser humano é – adaptamo-nos às coisas mais incríveis, para sobreviver.
Mas eu hoje, aqui e agora, queria falar-vos especificamente da aprendizagem das crianças. E explicar-vos porque é que, neste âmbito, acredito que as nossas crianças vão ainda sofrer com as repercussões desta pandemia por um período grande, muito grande, demasiado grande, de tempo. Não vou sequer abordar os efeitos em saúde mental, em competências sociais das crianças... mas apenas a questão da aprendizagem (na medida em que possa ser desvinculada de todas as restantes variáveis).
Ainda relativamente no início desta pandemia, talvez em maio/junho de 2020, por trabalhar com famílias carenciadas, fui-me apercebendo do impacto desigual que o encerramento das escolas trazia aos nossos meninos. Relembro perfeitamente uma consulta que fiz, com a mãe de um menino que estava a terminar o 2º ano de escolaridade, mãe essa que era analfabeta e como não tinha acesso à internet (penso que nem sabia bem o que isso era) e que ia buscar as fichas de trabalho à junta de freguesia, à segunda-feira, para o filho ir resolvendo durante a semana. Confessou-me com mágoa que não conseguia ajudar o filho a resolver as fichas porque nem as ler conseguia. E isto foi ainda no início. Quando uma parte de mim gritava com a injustiça social que via todos os dias à minha frente, com o acentuar do fosso entre os que já tinham dificuldades na sua aprendizagem a ficarem cada vez mais distantes dos restantes, mas parte essa que também pensava – isto irá melhorar quando as escolas reabrirem, no novo ano letivo, e com a vitória do Homem versus o vírus. Ora as escolas reabriram, em setembro de 2020, mas as “atividades” escolares começaram a assemelhar-se a uma dança sem ritmo, a uma orquestra sem maestro. Cordas, sopros, percussão sem noção nenhuma de onde estão os restantes, entrando e saindo da peça sem um qualquer fio condutor. Assim estavam e creio que ainda estão as nossas crianças. Por vezes na escola. Por vezes em casa. Em casa podem estar de férias. Em casa podem estar em confinamento. Em casa podem ainda estar em isolamento profilático. Em casa podem estar doentes. Na escola, estão a pensar se irão para casa. Em casa, a pensar se voltarão à escola. Quando em confinamento ou em isolamento, algumas em ensino a distância. Sem se perceber bem de que tipo, em que moldes, e qual o eventual benefício colhido pelas crianças. Confuso, não é? Agora vamos imaginar toda esta confusão numa criança que entrou em plena pandemia no 1º ano, em que, numa altura dita “normal”, iria aprender o mecanismo da leitura e da escrita, e conceitos básicos de matemática. Chamemos-lhe Manel. O Manel tem competências cognitivas adequadas à sua idade, mas simplesmente não teve hipótese de aprender o que é suposto neste 1º ano. O Manel que ainda gosta tanto de brincar não teve hipótese de aprender, o professor do Manel que nem sequer tinha computador na escola não teve hipótese de explicar, e os pais do Manel que estiveram os dois em teletrabalho não tiveram hipótese de ajudar. Não serve apontar dedos, não serve atribuir culpa, porque não é um único grande evento que condiciona tudo, mas sim uma cascata imparável de pequenos eventos que conduz a um determinado desfecho. O Manel transitou para o 2º ano, sem as competências esperadas. Apercebemo-nos necessariamente de que tem um problema na sua aprendizagem, não dominando a leitura, a escrita (ou ambas), e/ou ainda o cálculo. E com o avançar do tempo, e com a complexidade crescente dos programas, essas dificuldades vão ter tendência para se ir acentuando. O Manel vai achar que é burro (possivelmente até já o pensa agora). O Manel vai achar que não consegue aprender nada. E o Manel vai deixar de gostar de ir para a escola, porque cada dia que vai lá parece que falam numa língua que ele não percebe. E terá esta verdadeira “perda de oportunidade de aprender” do Manel alguma hipótese de retorno? Como a distinguir de patologias específicas, como a perturbação específica da aprendizagem (anteriormente conhecida com as denominações de dislexia, disortografia, discalculia)? Porque um dos elementos-chave para a sua identificação e diagnóstico é exatamente poderem ocorrer concomitantemente com determinadas condições ambientais (diferenças culturais, ensino inapropriado ou insuficiente) mas NÃO SEREM resultado destas condições. Estará o Manel prestes a levar o rótulo de “disléxico” (passe o uso do termo já incorreto nos tempos atuais, para melhor entendimento) ou simplesmente teve o azar de entrar no 1º ano em plena pandemia? E, sendo um ou outro dos casos, haverá diferença na nossa atuação? E atuaremos (ou poderemos atuar) enquanto houver a “ameaça velada” de encerramento de escolas, de confinamentos ou isolamentos? É este o meu grande, mas tão grande receio em relação às aprendizagens das nossas crianças. E exemplifiquei com o Manel no 1º ano, mas poderia ser a Maria no 3º ano, ou o Pedro no 6º ano. Cada um deles, e todos, foram privados da possibilidade de aprender sem uma limitação (e que limitação esta!) externa. E se calhar cada um deles, e todos, vão achar que o problema é deles. E calhando nós, sociedade, também vamos achar isso. Até porque se uns conseguem, por que não conseguem os outros?
Levanto-vos o problema, e malgrado meu, não vos consigo apresentar uma solução. Porque acho que ainda agora começámos a ver as franjas das repercussões na aprendizagem, e vem-me à cabeça aquela imagem do iceberg em que apenas se vê uma pequena porção à tona de água, quando o maior volume se encontra “invisível” ao olho mesmo do navegador experiente. Mas deixo-vos com uma ideia. As escolas deveriam ser os últimos locais a encerrar, e os primeiros a abrir. São cruciais para o desenvolvimento das nossas crianças. E se não se assegurar o seu funcionamento em pleno, se não nos matar fisicamente a pandemia, certamente com muitas sequelas ficará esta nova geração.
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