No passado dia 28 de fevereiro, segunda-feira, celebrou-se o Dia Mundial das Doenças Raras. Este ano, fruto dos eventos que são coincidentes (falo, naturalmente, do conflito entre a Rússia e a Ucrânia) talvez possa ter passado ainda um pouco mais despercebido do que em anos anteriores. Mas a realidade é que não é fácil lembrarmo-nos das doenças raras. Para a maioria de nós, felizmente, são ecos distantes que nunca chegamos a conhecer. E por isso mesmo é importante que haja uma sensibilização para as mesmas. Porque há crianças e famílias a lutar diariamente contra uma inevitabilidade que nunca sonharam vir a enfrentar.
Mas afinal, o que são doenças raras? É fácil entender que são doenças que atingem um pequeno número de pessoas – no caso da Europa, uma doença é dita como rara quando atinge 1 em 2.000 pessoas. O certo é que, independentemente da doença em causa, são doenças crónicas, debilitantes, frequentemente com risco de vida que podem conduzir à morte muitas vezes precocemente. Por serem raras, o conhecimento sobre as mesmas é muitas vezes pouco, e há necessidade de uma constante investigação quer do ponto de vista genético, quer na produção de tratamentos, no apoio multidisciplinar por vezes com terapias, na integração social e suporte às famílias.
Algumas destas doenças manifestam-se na infância, outras apenas na vida adulta. Mas independentemente da idade de início dos sintomas, o caminho até ao diagnóstico é muitas vezes longo (quando efetivamente é possível fazer um diagnóstico), a informação disponível escassa e inacessível, em muitas situações não existe tratamento, e pouca acessibilidade aos cuidados que poderiam melhorar a qualidade e esperança de vida destes doentes.
No meu percurso profissional passei já por várias crianças, e famílias, RARAS. Tocaram-me, em tantos sentidos. E por isso vos falo deles aqui, no anonimato de nomes diferentes, e sem identificar as doenças, porque de raras que são poderia ser fácil alguém os identificar. Mas também escolho fazê-lo porque os seus percursos e vivências, tornam por vezes a nossa experiência pessoal com as nossas pequenas doenças, numa pequena gota nesse oceano que é viver com uma doença rara.
Quero falar-vos do Mateus, que sofre de uma doença rara que cursa com atraso do desenvolvimento, dificuldades alimentares, em que os pais na consulta dos três anos diziam com orgulho “Dra., o Mateus já dá uns passos sozinho”, uma competência que se vê nas crianças saudáveis entre os 12 e os 18 meses. O seu diagnóstico foi feito depois de um longo e difícil trajeto, por volta dos 15 meses de idade. A mãe deixou o seu trabalho, diariamente leva o Mateus às múltiplas terapias (muitas suportadas a título particular), e demora cerca de 1 hora a 1 hora e meia para que o Mateus coma uma refeição inteira sem vomitar. Isto para cerca de 4 a 5 refeições por dia. Teme o dia, que estará para breve, em que o Mateus entre na escola – haverá alguém que o conheça assim tão bem, e que consiga despender o tempo que ele precisa para estes cuidados? Pergunto-lhe como aguenta, todos os dias, eu e ela de lágrimas nos olhos. Ela agarra forte na mão do pai, e com um olhar de amor RARO para o Mateus, diz-me baixinho – Drª, como poderia ser de outra forma?
Posso ainda falar-vos do Francisco, com 13 anos. A sua doença rara acompanha-se de alterações faciais que levam a expressões por vezes um pouco estranhas, alterações nos ossos, e atraso no desenvolvimento. O Francisco foi vítima de bullying na sua escola, exatamente porque é um menino diferente – chamavam-lhe “o pequeno monstro”, “cara de sapo”. Chegaram a trancá-lo numa casa de banho da escola, e enrolaram-no em papel higiénico, porque ele era “cocó”. E chega à consulta dos 13 anos, de sorriso no rosto, e abraça-me porque sou a sua “Doutora Brinquedos”. Não guarda rancor, não conhece o mal deste mundo, e é a mãe que chora, pois ela sim não compreende como é possível que haja crianças e adolescentes neste mundo que causem tamanha dor aos outros. E também eu fico de lágrimas nos olhos, porque não lhe sei responder.
Querem conhecer ainda a Ana? A Ana tem 9 anos. E a sua doença rara faz com que tenha uma altura muito abaixo da média das crianças, o que diríamos ser um “anão”. A Ana anda em consultas de ortopedia, de endocrinologia, de psicologia, de otorrinolaringologia, de patologia do sono e de neurocirurgia. A escola da Ana ainda hoje não tem uma mesa e cadeira adaptadas à sua altura – aguardam autorização do agrupamento para comprar, e isto já lá vão dois anos. A Ana tem um pequeno banco para poder subir para a cadeira, fica com as pernas penduradas, e os seus pequenos braços com dificuldade ficam acima da mesa, dificultando a tarefa de escrever num simples papel. Um dia a Ana ficou esquecida na sala de aula, cuja porta simplesmente se fechou, mas a impossibilitou de sair enquanto todos estavam no recreio, porque não chegava à maçaneta da porta para a abrir. Coisas tão simples, e que me partem o coração. Lutas diárias por coisas que todos nós damos como garantidas.
Como o Mateus, o Francisco, e a Ana, podia eu desfilar-vos uma série de outras crianças, adolescentes, e famílias que atravessam todos os dias o tormento de serem diferentes, e RARAS. A nenhuma delas falta esse amor RARO de que vos falei no início, mas a muitas continua a faltar a compreensão e o apoio de uma sociedade que discrimina a diferença e coloca obstáculos a cada passo no seu caminho, já de si difícil. Talvez se todos tivermos consciência de que existem estas doenças, crianças e famílias RARAS, possa ser dado um primeiro passo para que a sua doença não seja o fator que as limite ou defina, nem as faça sofrer mais do que o que certamente sofrem simplesmente por terem tido a “má sorte” de ter nascido com ela.
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