Neste mês em que se celebram o Dia Mundial de luta contra o Cancro, e o Dia Internacional da Criança com Cancro, escolhi trazer-vos uma história dos meus dias de trabalho no Hospital. Já faz algum tempo que não faço isso, e acho que da mesma forma como algumas vidas (e infelizmente, mortes) me tocaram, também talvez o possam fazer a vós.
Sei que vidas não são comparáveis. Sei que no nosso pequeno universo pessoal chegar atrasado ao emprego, ter um filho com uma otite, deixar a perna de peru queimar no forno, são azares. Mas também sei que há “azares”... e azares.
O Tomás era um miúdo mesmo porreiro. Conheci-o quando ele devia ter o quê, creio que quase 9 anos. Veio à urgência trazido pela mãe, porque nas últimas semanas queixava-se à noite de dor na perna esquerda. No início a mãe tinha pensado que teria a ver com uma pancada provavelmente em algum jogo de futebol (o Tomás jogava futebol “a sério” num clube local), e por isso não estranhou a perna estar um pouco inchada. Mas não passava, e se inicialmente as dores eram pontuais, agora queixava-se todas as noites. Bastaria isto para deixar qualquer um de nós com os cabelos em pé. Mas então quando veio a radiografia, não havia margem para dúvida – a imagem de osso “ratado” assinalava a palavra mais temida – um cancro. Neste caso, um cancro ósseo relativamente raro, mas que a lotaria do azar tinha atribuído àquela família. Não foi fácil dizer isto à mãe. Mas mais ainda, não foi nada fácil para esta mãe ouvir o que lhe foi dito, naquele dia, naquela hora. E isto foi apenas o início. Do internamento para se perceber quão grave era a lesão, e o que atingia já, até ao início de uma quimioterapia brutal, passando pela cirurgia que felizmente conseguiu preservar a perna, foi uma longa, mas mesmo longa caminhada. E a mãe, Joana, esteve sempre ao lado do Tomás, sempre a dar-lhe força, (quase) sempre com um sorriso no rosto, e reservando as incertezas para si, e os momentos mais duros para quem a via fora da presença do filho. Nunca se viu grande família junto dela, soubemos que o pai do Tomás tinha falecido ainda quando a Joana estava grávida, e sempre ficou bem visível que aqueles dois eram tudo um para o outro.
Depois da grande vitória inicial contra o cancro, perdi um pouco o rasto ao Tomás, porque ele continuou a ser seguido em consultas periódicas para monitorizar a situação, e houve até uma altura que se comentou numa reunião – “Alguém sabe do Tomás?”, seguido de um leve encolher de ombros de todos, e a vida seguiu na utopia perfeita de que tudo está bem, quando acaba bem. Eu também mudei de hospital de trabalho, e nunca mais pensei no Tomás.
Até ao dia. Até ao dia que o Tomás deu entrada, novamente, num internamento programado no Hospital onde eu estava nessa altura, agora já com 16 anos. Em tratamento paliativo, conduzido por um Hospital Central onde ele tinha retomado o seguimento médico. Sabem o que tinha acontecido ao Tomás? Pois a mãe, Joana, tinha falecido quando o Tomás tinha 12 anos, com cancro do ovário. Depois de meses e meses a definhar à frente do Tomás. Nessa altura ele ficou a viver com os avós maternos, noutra cidade. E com 14 anos foi diagnosticado ao Tomás um linfoma. Os avós, sem capacidade para tomar conta dele, e a ficar já velhos, acabaram por após múltiplos tratamentos e tentativas ter que o entregar para um lar de rapazes, na área local, quando se tornou claro que já não havia mais nada a fazer do que senão dar-lhe algum conforto naquela que seria a fase final da sua ainda tão curta vida. Ele sabia que ia morrer, e nós sabíamos que ele ia morrer. Não quero sequer pôr-me a imaginar o que ele pensaria sobre a sua vida. É que nem tenho esse direito. E o Tomás assim morreu, numa cama de Hospital, com 16 anos. Alguns dizem que morreu de cancro. Eu, por outro lado, acho que ele acabou por morrer de um completo, inexplicável, e desumano, azar na vida. Por isso, agora quando acontece alguma coisa, antes de dizer que estou com azar, penso no Tomás, e considero-me a pessoa mais sortuda do mundo. E se calhar tu também.
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