Gostava de vos dar a conhecer a Mariana.
Conheci a Mariana quando eu era ainda interna de Pediatria, talvez há uns bons 14 ou 15 anos. Era uma rapariga à qual a vida tinha castigado de uma forma implacável. Retirada à família aos 7 anos por uma história prolongada de abusos, e institucionalizada nessa sequência, a Mariana tinha recebido um diagnóstico de diabetes aos 9 anos de idade. Esteve em processo de adoção por algumas vezes, recusada não só pela sua doença crónica como posteriormente pelo comportamento “selvagem” e incontrolável que se desencadeou na sua adolescência.
Era uma miúda tão depressa dócil, como no segundo seguinte explodia numa fúria incontrolável, que podia dirigir-se tanto para o outro como contra ela própria. Eu conhecia-a num dos múltiplos internamentos em que foi trazida pelos cuidadores da instituição por descompensação da sua diabetes. É que, sabem, a Mariana não administrava a insulina como era necessário para o seu corpo funcionar corretamente. E assim, de tempos a tempos, lá ia ter connosco ao hospital, umas vezes em melhor estado, outras vezes pior.
A Mariana tinha raiva de tudo, e de todos, e principalmente, dela própria. Tinha sido uma miúda tão “má” que um elemento da própria família (família que era suposto protegê-la) tinha abusado dela. Continuava a ser uma miúda tão “má” que foi castigada com uma doença incurável. E era ainda tão “má”, que ninguém a queria para fazer parte da sua família.
A Mariana não tinha rumo, e ninguém a conseguia ajudar. Foi medicada para a depressão, fui sujeita a terapia psicológica... ao mesmo tempo empreendia várias fugas da instituição (umas mais duradouras que outras) mas acabava sempre por ser encontrada, em péssimo estado pela sua diabetes.
Até um dia. Até um dia em que eu estava de urgência. Como já referi, eu era ainda interna, a aprender no meu percurso para ser pediatra, quando o INEM a trouxe, inconsciente, para o Serviço de Urgência. Lá no serviço, já todos sabíamos que ela tinha fugido novamente, e já se contava que mais urgência, menos urgência, lá viesse a Mariana. Mas desta vez, não foi como as outras. Tinham passado demasiados dias. Assisti, no fundo da “terrível sala” da reanimação, ao esforço de toda a equipa para a recuperar. Todas as pessoas daquela sala a conheciam, mas será que alguém chegou mesmo a conhecê-la? Enquanto corriam líquidos, se faziam análises, se administravam medicamentos, os sistemas vitais da Mariana iam desligando, um após o outro. Eu lembro-me da sua cara, e recordo que na altura pensei, “não tem ar de ter dor...não tem ar de sofrimento...tem ar de paz”. Seria possível que, para a Mariana, o mundo fosse um local tão mau que abandoná-lo fosse a sua única fonte de alguma paz?
A Mariana morreu “oficialmente” naquele dia, naquela urgência, com aquela equipa, naquela maca de reanimação. Mas a Mariana tinha já, para mim hoje, morrido há bastante tempo atrás. A Mariana morreu a primeira vez quando abusaram dela. Morreu a segunda vez quando soube que tinha diabetes. E voltou a morrer todos os dias em que a sociedade a rejeitou em acolher no seio de uma, duas, três famílias.
E eu, que fiz? Continuei necessariamente a viver. E a recordar. Subespecializei-me em Medicina do Adolescente, e conheci tantas outras adolescentes com tantas outras histórias de vida. E em memória da Mariana, procurei ajudá-las. Talvez assim a Mariana me perdoe, à sociedade, e à própria vida, por não termos conseguido fazer mais por ela.
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