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A fé na humanidade e o “multitasking”


Saibam os meus fiéis leitores que eu sempre me considerei uma mulher multitasking. Ele houve alturas da vida em que verdadeiramente me senti tipo aquele macaco que faz malabarismo com os pinos a tentar que nenhum caia no chão. Não querendo menosprezar os meus leitores do género masculino, nem entrar no campo do feminismo, tenho de ser completamente honesta - as funções mais importantes que exigem o multitasking são ocupadas por mulheres. Devemos ter no nosso código genético ali uma coisa qualquer que quando nascemos é ativada no caso do sexo feminino, e permanece latente no caso do sexo masculino. Senão, vejamos. Temos, por exemplo, Christine Lagarde, atualmente presidente do Banco Central Europeu, e anteriormente presidente do FMI. Uma mulher que vingou em cargos maioritariamente ocupados anteriormente por homens. É, o equivalente em Portugal, a uma... sei lá, por exemplo, a uma Cristina Ferreira. Ele é ela por ela. Uma mulher que vingou em cargos também anteriormente atribuídos a homens, pelo seu próprio mérito. Uma gargalhada estridente... um dueto de luxo com o Manuel Luís Goucha em que o mestre foi ultrapassado pelo aprendiz (qual star wars, os conhecedores reconhecerão nesta história o Anakin Skywalker a ultrapassar o Obi Wan Kenobi, é a realidade a imitar a ficção), uma empresária que criou uma grande marca. Goste-se ou não se goste, tem que se dar o devido mérito a esta senhora. Subiu a pulso. Eventualmente depois acabou mas é por torcer muitos pulsos nesse caminho, mas chegou lá.

E porque é que trago este assunto à baila? Porque na passada quinta-feira tive um exemplo cru e nu do que é o multitasking, mas a nível do Serviço Nacional de Saúde. Então, vou passar a descrever a situação, e no final da mesma iremos tirar as devidas ilações da mesma.

Esta “vossa pediatra”, como a maioria de vós saberão, virou doente. E na sua qualidade de doente, na altura em que teve alta do hospital, era portadora de uma folha A4 fundamental para o seu futuro. Não, não era o papel da baixa (lol), que também tem a sua importância, mas sim uma requisição para fazer análises, no laboratório de um grande hospital central. Ora o papel dizia originalmente que a marcação era às 11h da manhã. Mas, a médica que me pediu estas análises avisou-me - têm de ser feitas às 8h, e não ligue à hora que está no papel, tem mesmo de ser às 8. E para clarificar bem, riscou manualmente as 11, colocou manualmente 8:00, e assinou o papel. E eu pensei para comigo (nah, isto não vai correr bem...). Mas como não estava no papel de médica mas sim no de doente, e saibam vocês que sou uma doente muito cumpridora, às 8 horas cheguei ao hospital. Bom, logo aí deparei-me com o primeiro obstáculo, naquilo que verdadeiramente seria o equivalente no atletismo dos 100 metros barreiras. A FILA. Dezenas de pessoas. Suspirei alto, e logo um senhor se apressou a oferecer-me a sua visão optimista - Ó menina, não fique assim, antes do COVID isto ainda era pior, parecíamos sardinha em lata!

Lá pensei eu, bem, parece-me que o estar marcado para as 8h não tem assim tanta importância, porque vou chegar lá à frente na melhor das hipóteses ao meio-dia. Se não desfalecer até lá, pode ser que possa depois comer o farnel que tinha já levado comigo (sou uma moça muito previdente). Quando me preparava para ocupar o último lugar, eis senão que uma “santa” que tinha ouvido o comentário do outro senhor interpela-me “menina, está marcada para que horas?” Ao que respondo “para as oito”. E ela logo respondeu “olhe, vai para trás daquele senhor que é o último que está das oito horas, porque eu já sou das nove”. Naquele momento eu voltei a recuperar a fé na humanidade, encarnada naquela senhora que me “estendeu” a primeira mão de um percurso que ainda teria muitas outras “mãos”. E lá fui eu, para trás do dito senhor que era o último das 8. Lá fomos avançando, avançando, contornando edifícios qual miúdo a fazer um pedi-paper, até que chegámos ao ponto em que já vislumbrávamos o fim da fila. E até lá chegar, tive oportunidade de observar em primeira mão este complexo circuito onde as peças da engrenagem eram várias para encaixarem umas nas outras e conduzirem a um bem oleado Serviço Nacional de Saúde. Acreditaram nesta última frase? Estão-vos a crescer umas asinhas neste momento. Pasmem-se então com a realidade no SNS: à porta de um contentor pré fabricado encontrava-se uma senhora (se calhar devia escrever com maiúscula, esta era uma verdadeira SENHORA), que era responsável por introduzir o número do pedido de análises numa máquina, após o qual saía uma senha, que era entregue à pessoa em causa, e esta sentava-se então numa sala de espera improvisada nesse contentor. Quando começava a ver que a sala de espera estava muito cheia, saía deste posto e ia pelos seus próprios pezinhos subir os lances de escada até ao local de colheitas, aguardar pelas instruções sobre se podia encaminhar mais utentes. E acham que ficava alguém no posto que ela deixava para trás? Agora está-vos a crescer uma auréola em cima da cabeça. Depois de ter autorização, voltava a descer, mas acham que ia para o primeiro posto? Pronto, agora é que vocês se transformaram no verdadeiro São Pedro. Claro que não. É óbvio que ia para o polo oposto chamar pelas senhas das pessoas que já podiam subir para o laboratório. Nesse momento, tive uma epifania. Aquela senhora não precisa de ginásios para nada. Sortuda, eu que estou gorda, o que não dava para o meu trabalho me colocar (imperativamente) em forma.

Lembram-se de eu ter dito quando a médica me passou o papel e riscou as horas marcadas por outras que aquilo não ia correr bem? Pois é. Cheguei ao primeiro lugar da fila. E observei atentamente a senhora auxiliar a introduzir o número do pedido. E saiu uma senha. Que era D. Os que estavam marcados para as oito eram os A, os das 9 o B, os das 10 os C, os das 11 os D. Lá está. ASNEIRA. Lá me diz a senhora auxiliar, provavelmente a pensar que eu era uma chica esperta a tentar dar o golpe: a senhora não está marcada a esta hora. Ao que eu, calmamente, comecei por desdobrar o papel da requisição e referi - “eu sei, mas veja o que diz aqui, a médica riscou as 11h e disse para eu vir às 8h. Até assinou e tudo!” A senhora manifestou a sua sensata interpretação - ah, mas a médica não devia fazer assim!!! Ou marcava para um dia onde houvesse vaga às 8h, ou então ligava para o laboratório a avisar que ia haver mais uma pessoa. Até porque cada pedido é diferente, e lá nas colheitas podem não ter os tubos para fazer as suas análises, pois são tubos diferentes. Eu engoli em seco, e simplesmente disse - pois, mas isso não é culpa do utente. A SENHORA olhou para mim, e apesar da fila enorme atrás de mim (eu já sentia nas minhas costas os olhares de todos, qual criminosa antes da execução por cadeira elétrica) disse: eu vou tentar resolver a sua situação. E novamente agarrou nas suas perninhas e foi subir os lances de escadas. Eu virei-me para a fila, e simplesmente encolhi os ombros. Acho que todos me perceberam, porque uma senhora mais idosa veio ter comigo e perguntou: Ó menina, mas isto só está uma pessoa para fazer estas coisas todas? E eu respondi - É, está só uma pessoa.

Passado uns minutos, nos quais a fila continuou a aumentar, lá vejo a senhora a descer as escadas e a vir ter comigo - olhe, vá já para cima, e vá ter com a chefe de sala que fazem-lhe as análises. E eu fui. E fizeram-me as análises.

Esta senhora podia ter feito tudo diferente. Podia não se ter preocupado. Podia não ter tentado corrigir um erro que não era dela. E estaria a cumprir somente as funções atribuídas, que até eram mais do que deviam. E mesmo assim, optou por ajudar-me.

É nesta altura que eu digo: esta SENHORA, esta verdadeiramente SENHORA, mostrou com a sua atitude que ainda podemos ter fé na humanidade (mesmo que seja, imerecidamente, em regime de multitasking).

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