Durante a semana passada, foi divulgado pela imprensa a existência de um caso suspeito em Portugal, num bebé de 4 meses, da “síndrome da criança abanada”, que se encontraria em investigação pelas autoridades competentes. A síndrome da criança abanada é uma designação atribuída a uma forma específica de maus-tratos infantis, em que se verifica uma combinação de lesões que resultam de trauma craniano direto, do abanar a cabeça do bebé, ou da combinação destas e de outro tipo de lesões. E eu fui questionada por alguns pais, preocupados com a possibilidade de algumas brincadeiras mais “enérgicas” poderem causar alguma lesão aos seus bebés.
Portanto, no meu papel de pediatra, e procurando informar-vos do que na realidade está aqui em causa, vou fazer o meu melhor para explicar o que é esta síndrome.
Não sei se têm esta noção, mas quase metade das mortes relacionadas com situações de maus-tratos na infância ocorrem em bebés com menos de 12 meses. E a lesão traumática craniana intencional é a principal causa de morte, ou de sequelas, que resulta dos maus-tratos físicos. O problema é que os mecanismos que causam este tipo de lesões dão sintomas muito inespecíficos e difíceis de identificar em crianças pequenas, o que faz com que quase um terço das crianças possam não ser corretamente diagnosticadas num primeiro encontro com o profissional de saúde. E isso é uma coisa má, pois sabemos que identificar estes casos o mais cedo possível faz toda a diferença – 4 em cada 5 mortes podiam ter sido evitadas se esta situação fosse reconhecida à partida.
As crianças com “síndrome da criança abanada” podem chegar-nos com lesões cerebrais graves, muitas vezes sem sinais externos de maus-tratos. No mecanismo causador destas lesões, geralmente temos uma combinação de forças de aceleração e desaceleração, de rotação, exercidas num cérebro ainda imaturo, numa cabeça que nos bebés ocupa uma proporção mais significativa do corpo, e ainda não tem musculatura no pescoço suficiente para amortecer estes movimentos. Portanto, se conseguirem imaginar, a figura típica é aquela de um adulto agarrar a criança pelos ombros, e “sacudi-la” para a frente e para trás, de uma forma violenta e repetida. Eu sei que não é uma imagem bonita, mas é essencial para que compreendam um pouco o mecanismo, e para perceberem que não é na brincadeira típica que estas coisas acontecem.
Sabemos que existem situações em que há maior probabilidade de ocorrer esta forma de maus-tratos – o choro incessante de um bebé é um dos fatores desencadeantes mais comummente envolvidos nesta lesão. Pensem nisto, vou traçar apenas um quadro – bebé a chorar toda a noite, cuidador sem dormir há séculos, sem qualquer apoio, apenas a querer que aquele bebé se cale... por vezes o cuidador pode nem ter noção do que está a fazer. Sim, eu sei que não há desculpa. Mas às vezes as lesões não acontecem de uma forma intencional – para verdadeiramente magoar a criança. E em poucos minutos, o desastre já aconteceu.
E surgem na urgência por causa de convulsões no bebé, por causa de dificuldade respiratória, ou prostração. E sem lesões externas. A primeira coisa que passa pela cabeça de um médico não será, na maior parte das vezes, maus-tratos. E isso atrasa o diagnóstico.
Quando a situação é grave, a continuação da investigação vai levar a realizar alguns exames, como por exemplo uma tomografia craniana, ou um exame oftalmológico, que vão dar mostrar nestes casos lesões sugestivas desta situação, e aí o que podia ser uma suspeita, passa a tornar-se uma grande probabilidade, e exige uma investigação muito responsável, em todos os sentidos. A sobrevivência daquela criança é o maior objetivo, mas na presença de lesões, sabemos que a probabilidade de ficarem marcas graves é grande – alguns estudos mostram que 55% das crianças ficam com problemas neurológicos, e 65% com défices visuais.
No meu primeiro ano de internato em pediatria, tive contacto com um caso suspeito desta síndrome. Entrou na urgência com a suspeita de uma infeção grave, e à medida que se iam fazendo os exames, surgiram as lesões características. A investigação não chegou a nenhuma conclusão, existiam vários cuidadores, e nenhuma certeza. A criança felizmente evoluiu bem, e no seu seguimento não voltou a verificar-se nenhum episódio suspeito. Mas para sempre, em mim, persistiu a dúvida. O que será que terá acontecido?
Ainda hoje penso nisso.
Bom, fica aqui o meu modesto contributo. Independentemente de tudo, uma boa rede de suporte, educar a população para as exigências da parentalidade, e identificar precocemente condições de risco para situações de maus-tratos, chamam-se “PREVENÇÃO”, e esta prevenção é a chave para que casos como este nunca mais venham a acontecer.
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