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Afinal qual a forma “certa” de colocar um supositório?


Nem nos meus sonhos mais loucos eu imaginei que ia começar o belo ano de 2023 a falar sobre... supositórios. E ainda mais, sobre a “forma certa” de colocar um supositório.

Antes do ano acabar estava na minha cabeça, “Ah, e tal, vou fazer um artigo XPTO sobre resoluções de ano novo, a motivar toda a minha gente a ser feliz e a aproveitar a vida...” e depois surgiu-me novamente em consulta esta “velha dúvida”. E eu disse assim de mim para mim, “Alexandra, não há temas demasiado irrelevantes para tu escreveres sobre eles. Há quem pise a lua, há quem invente a roda, mas tu vais ajudar muitos e muitos pais que se debatem desde 1991 com informações contraditórias nesta temática”. É. 1991. Sabiam disto? Há 30 anos que o caos nas nossas vidas foi lançado por um artigo no Lancet, intitulado “Rectal suppository: commonsense and mode of insertion” – que é como quem diz, supositório retal: senso comum e modo de aplicação. Meus amigos, se o Lancet que é o Lancet (não sei se sabem mas é uma das revistas médicas mais prestigiadas, sendo que até ver cometeu algumas “gaffes”, a mais famosa das quais a publicação de um artigo infame sobre a ligação entre vacinas e autismo...) gastou um pedacinho das suas folhas a falar sobre isto, quem sou eu, uma mera pediatra, a dizer que há coisas mais importantes para nos entretermos que esta?


Adiante. Antes de mais, qual a importância da aplicação de medicação em supositório nas nossas vidas? Tem, efetivamente, alguma importância. À via de administração dos supositórios chama-se via retal, que em algumas situações é uma via muito útil porque está facilmente acessível (mais ou menos...), e permite uma absorção da medicação relativamente rápida e eficaz. Às vezes não podemos usar outro tipo de vias de administração (por exemplo, imaginem o caso de crianças a vomitar), e há claramente vantagem em usar o supositório. Noutro tipo de situações, como no caso das convulsões febris, existem medicamentos que se aplicam via retal (não são propriamente supositórios, mas a ideia é a mesma) porque pode ser aplicado por qualquer pessoa, extra-hospitalar, ao contrário de medicações administradas na veia (ou no caso das convulsões, nunca se deve administrar nada via oral, pois há o risco de engasgamento e aspiração). Portanto, creio que para já não há risco de os supositórios irem desaparecer, porque em determinadas situações são mesmo muito úteis.


Continuando. Quando os supositórios são produzidos, têm uma ponta afunilada, e terminam numa parte plana. Segue daqui que os senhores que os produzem provavelmente consideraram que era simpático ter uma ponta afunilada que facilitasse a introdução, pois o senso comum (e calculo que as leis da física, até) é que assim entraria com menor desconforto para o indivíduo sujeito a tal prática. Portanto, aqui está um belo exemplo de tentar que uma prática que provavelmente não é muito agradável seja o menos desconfortável possível. Atenção que nunca consegui perceber com os bebés qual a opinião deles sobre esta questão, mas a minha experiência a ver ouvidos com o otoscópio, ou a avaliar temperatura retal, diz-me que tudo o que lhes é colocado em orifícios não é muito agradável (tirando a comida na boca)!



(Esquema do supositório. Para que não restem dúvidas.)



E o drama adensa-se. Em 1991, um senhor chamado Abd-el-Maeboud resolveu fazer um estudo na população egípcia (enorme, vejam, cerca de 600 pessoas... er... ok...), onde chegou à conclusão de que a maioria das pessoas introduzia o supositório com a ponta afunilada primeiro por senso comum, ou por informação obtida junto de familiares, ou amigos. Chocante, que as pessoas usem o senso comum nestas práticas. E depois chegava à conclusão que se se introduzisse a parte plana primeiro, as contrações musculares do intestino e a pressão gerada poderiam, eventualmente, diminuir a probabilidade de o supositório ser expulso. E pronto, estava o caldo entornado. A partir daí, nunca mais a administração de supositórios foi a mesma. Ele há gente que recomenda a ponta afunilada para a frente, ele há gente que recomenda a parte plana para a frente... até há livros que abordam o assunto!!!!... e os pobres dos pais sem saberem se isto, na realidade, interessa para o que quer que seja.


Desde então muito pouco se ligou em termos científicos a esta situação. Calculo, sei lá bem porquê, que tivessem outras coisas mais importantes para se dedicar. Mas em 2009 veio um senhor, Kyle Gaye, dizer que isto que tinha sido escrito pelo senhor egípcio não fazia sentido nenhum. Mas isto foi publicado na revista Nursing Times, que não é nenhuma revista Lancet. Nessa altura o Lancet provavelmente já se tinha deixado destas coisas. E o que é certo é que não há estudos (e se calhar, atrevo-me a dizer que ainda bem que não, folgo em pensar que se dediquem a coisas mais relevantes) a comparar o mais importante – que é a absorção. Mas reparem, não faz sentido que haja absorção diferente quer o supositório seja inserido de uma forma, ou de outra, desde que permaneça no local correto, que é o reto. Portanto, o objetivo é que ele permaneça no interior.


Agora as “bulas” dos supositórios. Curioso... todas as que consultei não dizem claramente como é que se introduz. Algumas nem falam na via de administração na parte de como usar, só dizem que é para administrar x vezes ao dia. Outras dizem via retal, mas não fazem referência à parte que é para introduzir primeiro. Se calhar somos só nós que ligamos a isso, quem os fabrica parte do princípio que é só olhar para eles que dá para perceber. Pois, meus amigos, de acordo com uns senhores egípcios, pensaram mal. Até para os supositórios precisamos, pelos vistos, de livro de instruções. E bem detalhado, com imagens, já agora.


Concluindo. Já perceberam, por tudo isto, que não há “forma certa” de administrar um supositório, o interesse é que ele permaneça no sítio em que é suposto atuar. Agora aqui a opinião desta pediatra é que deve ser um bocadinho menos chato introduzi-lo pela parte afunilada, para a criança. Isto é que é uma prática respeitadora, na medida do possível. E a experiência diz-me que o mais importante é mesmo uma coisa que resulta muito bem, que é, após a introdução, manter as nádegas da criança um pouco apertadas uma contra a outra, alguns segundos, para que aquele reflexo automático de expulsão em algumas crianças não se verifique. Agora fica à vossa responsabilidade. Evidência clara de algum benefício entre uma forma de administração, ou outra forma, não há. E não havendo, é bom que nos reste uma coisa que às vezes é subvalorizada – o bom senso.


Bibliografia (sim, ou vocês pensavam que eu ia dizer isto só por dizer)!


- Lancet. 1991 Sep 28;338(8770):798-800. doi: 10.1016/0140-6736(91)90676-g.

Rectal suppository: commonsense and mode of insertion

- Nurs Times. 2009 Jan;105(2):16.

Should a suppository be inserted with the blunt end or the pointed end first, or does it not matter?



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