Não sei se se deram conta, mas na última semana circularam pelas redes sociais, e pelos websites de vários órgãos noticiosos, vídeos e notícias sobre alegados maus-tratos a crianças praticados em alguns infantários. Uma notícia dizia respeito ao julgamento em curso de três ex-funcionárias de uma creche em Caldas da Rainha, acusadas de múltiplos crimes de maus-tratos (a descrição de alguns é aberrante, como a de uma criança autista que era segurada vigorosamente enquanto outra literalmente “enfiava” comida pela boca, sem dar tempo para engolir nem respirar). Num outro caso, o mote era para partilhar uma peça em vídeo o mais possível, para que situações como a que era retratada não tornassem a acontecer. Nos vídeos que vi, assistia-se a pessoas que seriam funcionárias da dita creche a “forçarem” algum tipo de alimentação, a uma criança com uma hemorragia na boca, e outra a dormir numa cama colocada numa casa de banho, e finalmente a algumas palavras racistas proferidas supostamente em relação a uma criança. E o problema é que eu acreditei nestes vídeos. Quase sem questionar a origem, o propósito, e o contexto. Da mesma forma como acredito que em várias instituições por aí sediadas, creches e jardins-de-infância, se ultrapassa a questão do “simples” desrespeito pela criança para se atingir um nível que já se enquadra nos maus-tratos, quer sejam por negligência, por violência física ou verbal. Houve uma altura que eu pensava que seriam casos muito pontuais, e extremos, mas agora já não estou tão segura assim.
E é urgente refletirmos sobre o que se está a passar, porque o argumento de que “sempre houve, sempre vai haver pessoas más” não enfia a carapuça convenientemente neste caso.
Antes de prosseguir com o relato do que me revolta e preocupa, gostaria de dizer que ainda assim acredito que a grande maioria dos infantários de facto “guarda” as crianças a seu cargo procurando fazer o melhor possível. Todos os sítios terão pontos mais positivos, outros mais negativos, e também trabalhando com filosofias diferentes que se adequarão mais a alguns contextos, e menos a outros. Mas no final, trabalham tendo como objetivo o bem-estar da criança.
O que é certo é que enquanto Pediatra, assisti nesta última entrada em ano letivo a queixas de vários pais em como estavam ainda impedidos de visitar ou entrar nas instalações, de proporcionar uma adaptação e um acolhimento gradual e faseado... isto quando as medidas de saúde pública em vigor anteriormente já não eram aplicáveis. E independentemente de regulamentos, de desculpas com a interferência no funcionamento, tais comportamentos evocam-me sempre a inquietude de um único pensamento – só se esconde quem tem algo a esconder. Questões então com a alimentação em creche são quase todos os dias. Bem como infantários onde as crianças são “deixadas” à frente da televisão. E se já isto não tem de nenhuma forma em atenção o bem-estar e o correto desenvolvimento da criança, o que dizer então de extremos como os maus-tratos? Muitos pais colocam os seus filhos nos infantários porque não têm alternativa, do ponto de vista laboral ou de rede de suporte familiar próxima ou alargada. Mas há outros que o fazem porque mesmo tendo essa hipótese, acreditam que a criança se irá desenvolver melhor, eu sei disto porque o vejo com muita frequência em consulta. E para os restantes não há grande volta a dar-lhe, nas condições que temos atualmente. Do ponto de vista de licença de maternidade ou paternidade, o foco é claramente a produtividade do trabalhador, e não a natalidade. A criança é uma “chatice” até que cresça e produza. Até porque entre múltiplas doenças “rouba” tempo laboral dos pais. O apoio à família é anedótico. E se antes as pessoas tinham de trabalhar para viver, agora têm de trabalhar para mal sobreviver. E ainda mais, as mensalidades praticadas pelos infantários continuam a ser, para muitos, pouco acessíveis. Mas “decidindo” colocar a criança no infantário, o que se segue? Encontramos estabelecimentos com funcionários mal pagos, excesso de crianças, condições físicas muitas vezes pouco adequadas, e práticas ultrapassadas. Temos pessoas a cuidar das nossas crianças que não gostam do que fazem, não têm preparação ou formação para o fazer, e muitas vezes com más condições. Quem é o elo mais fraco aqui? A criança. Que muitas vezes, quando é pequena, não se expressa, e não tem nenhum adulto a zelar por ela. E de outro lado temos os pais. Que não serão coniventes com nenhuma destas situações, obviamente, mas que se sentem impedidos de fazer alguma coisa com receio de perder a vaga e de não terem outro sítio onde deixar a criança. Ou seja, poderão não concordar com as políticas, regulamentos, e regras, mas que se sentem de pés e mãos atados, e amedrontados.
Esta “amálgama” de ideias assusta-me imenso. Porque todos queremos acreditar que as crianças são sempre bem tratadas, mas todos sabemos o que estamos a enfrentar diariamente, em Portugal. O declínio do poder de compra, a dificuldade no acesso a itens básicos de sobrevivência (quanto mais de algum conforto), a degradação da saúde e da educação. Se não refletirmos sobre a direção que tudo isto está a tomar, casos como estes vão ser cada vez mais e mais frequentes. Nas nossas “barbas”. Enquanto nós continuamos simplesmente a dizer que não é possível. Urge tomar medidas sérias de proteção à criança, e à família. Cada vez mais.
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