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Não, não vale tudo!


Trago-vos hoje esta publicação por uma questão de necessidade minha. Estou “que nem posso”. Será talvez um assunto que pode gerar controvérsia, mas o facto é que demitirmo-nos de toda e qualquer participação só porque temos receio da crítica, e pior do que uma crítica que poderia até ser construtiva, mas mesmo do ataque às vezes desenfreado por pessoas que não terão outros argumentos para além desse, também não é a minha postura.

Os pais são, e sempre serão, uma população sensível e altamente influenciável. Para o bom, e infelizmente para o mau também. Com a parentalidade vem a insegurança da novidade, o receio de falhar num dos papéis principais da maioria das vidas, e o medo do erro. Todo e qualquer pai quer fazer o melhor pelos seus filhos. E não é bonito alguém procurar aproveitar-se disso, em seu próprio benefício. Qualquer que seja a forma que este benefício para si tome.

Dito isto, eu fico verdadeiramente feliz por hoje em dia se abraçar uma parentalidade mais consciente das verdadeiras necessidades da criança, uma parentalidade que não se quer permissiva mas sim positiva, guiada pelo exemplo, pelo respeito, e pelo amor. Eu própria, enquanto pediatra, fiz uma evolução no meu caminho que passou de uma postura mais rígida, fixada no “o que eu aprendi” para “o que é que é o melhor para esta criança, e esta família?”. Às vezes olho para trás e penso “céus, como é que eu já disse estas coisas?”. Mas a verdade é que a ciência evolui, o conhecimento felizmente também, e o caminho que trilhei permitiu-me aproximar a minha prática às recomendações científicas e às famílias de uma forma em que eu tento que ambas se integrem. Agora, há uma coisa da qual eu não posso abdicar. Não só como pediatra, mas como pessoa. É que, por mais que eu entre em “sintonia”, seja empática com o sofrimento das pessoas, não posso prestar informações erradas só para que elas se sintam “acolhidas”. Por outro lado, não tenho o direito de decidir “por mim”, o que faz mais sentido para a família. E acima de tudo, não devo falar sobre coisas sobre as quais não tenho competência para falar (não quer dizer que não possa dizer coisas erradas, como toda a gente, mas isso nunca será propositado, e agradeço toda a crítica construtiva porque ninguém é perfeito, nem ninguém sabe tudo). E é verdadeiramente indigno, irresponsável, e perigoso, aquilo que por vezes se vê em publicações na internet. Pessoas que, pela dimensão da sua influência, ainda deveriam ter mais cuidado com a “informação” que partilham. Não, meus amigos, não vale tudo.


Vamos tomar como exemplo uma publicação feita no instagram, esta semana, onde se falava sobre a introdução da alimentação complementar. Já não basta termos toda e qualquer pessoa que tirou uma formação ou leu qualquer coisa sobre o assunto a mandar palpites sobre este tema. Na internet, parece que somos todos certificados. Basta lá pôr um certinho verde e escrever “certificado”, e todo um mundo de asneiras se abre à nossa frente. Neste post sobre introdução da alimentação (porque, meus amigos, o erro começa logo ali – introdução alimentar aos 6 meses – e antes, o leite não é alimento?. Sim, os bebés esperam pacientemente até aos 6 meses para se começar a alimentar). Depois, assume-se uma discordância total (atenção não só discordância, como discordância total) com a postura de introduzir a alimentação complementar aos 4 meses. Acaso dominamos todas as situações em nutrição infantil que poderão condicionar uma introdução mais precoce? Acaso avaliamos a situação individual de cada criança no que diz respeito às suas necessidades e às da sua família? Não, vamos mas é discordar totalmente e culpabilizar os pais que por algum motivo precisam de fazer de outra forma, a quem um profissional credenciado deu essa indicação, e até à ESPGHAN, que é só a Sociedade Europeia de Gastroenterologia, Hepatologia, e Nutrição Pediátrica, que diz que a introdução da alimentação complementar poderá ser feita em qualquer altura entre os 4 e os 6 meses. Vamos “só” discordar totalmente disso. Porque é a internet, porque podemos, e alguém vai acreditar em nós. E aqui só uma nota, para que fique bem claro, sim, a Organização Mundial da Saúde e a Direção-Geral da Saúde recomendam o aleitamento exclusivo até aos 6 meses. Ninguém está a dizer que não recomendam (se eu não frisar bem isto arrisco-me a ter uma brigada atrás de mim). Mas há realidades para além do nosso umbigo, há situações em que não é possível, e situações em que não é isso que as famílias querem, e não se têm que sentir piores pais só porque fazem uma introdução mais precoce, principalmente quando isso é uma possibilidade aceitável, ou mesmo uma necessidade.


Depois vêm os sinais de prontidão – que necessariamente é frisado nesta publicação terem de estar presentes para iniciar a introdução da alimentação complementar. E diz-se que a etapa do sentar tem de estar completamente adquirida. E é referido (aqui a única informação com a qual concordo) que o sentar sem apoio pode ser uma competência atingida aos 9 meses, e isso é dentro do intervalo expectável também. Portanto, logo vem a relação – ora, se a criança se senta aos 7, 8 ou 9, a introdução alimentação não depende da idade, mas sim do desenvolvimento físico e sensorial do bebé. Tenham atenção, isto é muito, mas muito grave de se dizer. Há poucas coisas que são pouco flexíveis na introdução da alimentação complementar, e há coisas que não correm logo como queremos, mas um dos pilares fundamentais é que a introdução da alimentação complementar não deve ser mais tarde do que os 6 meses e uma semana. Porque, a partir dessa altura, uma alimentação exclusivamente láctea (quer seja de leite materno, sempre o alimento ideal, ou de fórmula, se não for possível) deixa de ser suficiente para assegurar as necessidades energéticas e em alguns micronutrientes (nomeadamente o ferro) que o bebé precisa para o seu crescimento e desenvolvimento. Não, não podemos esperar até aos 9 meses para dar a conhecer outros alimentos ao bebé. Sim, o leite continua a ser o alimento principal no primeiro ano de vida, e grande parte dos bebés precisa de algum tempo para se ajustar à oferta de outros alimentos, mas nunca devemos deixar de o fazer por nossa omissão! Por isso é que se diz “alimentação complementar”, porque o alimento principal continua a ser o leite, os restantes vão “complementar” aquilo que este já não dará em quantidade suficiente. E o que dizer das crianças que têm um atraso global de desenvolvimento e se sentam aos 15 meses, ou aos 2 anos, ou mais tarde? Não se faz a introdução da alimentação complementar? Irresponsável, no mínimo, esta afirmação.


E depois encerra-se com chave de ouro. A “dica extra”. O leite é o principal alimento dos bebés até aos 24 meses. E não só isso, mas é que é o que faz o bebé “engordar” e “ganhar peso”. Começo pela parte do “engordar” bebés. Perante uma sociedade que luta com hábitos alimentares cada vez menos adequados à sua realidade. Uma sociedade que lentamente e com dificuldade queremos desvincular da imagem do bebé “rechonchudinho” e cheio de “refegos” que representa o bebé bem alimentado. Uma sociedade que associa a imagem, ao ser saudável. Em que agora observamos cada vez mais crianças a sofrer com a sua imagem, se não for “perfeita” como se vê num ecrã, a sofrer com os comentários feitos à mesma. Portanto, não, o objetivo do leite não é, de todo, engordar bebés. Lamento. É ter bebés saudáveis. E termino com mais uma informação perigosa – o leite é o alimento principal no primeiro ano de vida, por isso é que o bebé abaixo dos 12 meses também é chamado de “lactente”, mas não o é no segundo. Nesta altura, o leite deve ser parte de uma alimentação variada e equilibrada. E claro, isto não é em automático, ora aos 11 meses e 30 dias o leite é principal, mas aos 12 e 1 dia já não é (existe alguma margem individual), mas o facto é que se por algum motivo a criança não tem a diversidade alimentar aceitável, essas restrições alimentares podem comprometer o crescimento e o desenvolvimento da criança e tem de se estar “em cima da situação” e não desvalorizar e “empurrar” com a barriga, porque é tudo normal, e cada um tem o seu tempo...


E mesmo depois de eu explicar sucintamente tudo isto, em resposta ao post referido, ele permanece lá. Para quem ler poder ser induzido em erro por ele. Para poder ser replicado, e multiplicado por essas redes fora. E eu não consigo fazer absolutamente nada acerca disso. A não ser isto. Portanto, não, nesta busca desenfreada de sucesso e "likes", não vale tudo.

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