
O fenómeno do sharenting é algo que, com a minha incursão enquanto pediatra e mãe nas redes sociais, me leva cada vez mais a pensar que é necessária uma reflexão muito cuidada sobre este tema.
Antes de mais, a sua própria definição. O termo "sharenting" resulta da junção entre as palavras "share" (partilhar) e "parenting" (parentalidade). É a prática dos pais que consiste em publicar e revelar publicamente detalhes sobre a vida dos seus filhos nas redes digitais. Antigamente, o conceito do sharenting resumia-se ao estarmos enquanto pais numa festa de aniversário, e comentarmos com a nossa melhor amiga "ai, o meu filho deixa-me doida. Andamos agora na fase do desfralde, e ontem fez chichi pelas pernas abaixo 3 vezes". A nossa amiga dizia-nos umas palavras de conforto, falava da sua experiência semelhante, e cada uma de nós voltava descansadamente à sua própria vida, e provavelmente nenhuma de nós dias mais tarde se recordaria dessa conversa. Bom, o panorama agora é completamente diferente. Sai um post no Instagram, "Amigas, está difícil de fazer o desfralde com o Manuel! Alguém tem uma dica para evitar que eu tenha 320.457 cuecas para lavar por semana, e o nome de um bom limpa-chão que não deixe nódoa em pavimento flutuante? Juro que ele faz de propósito, é tão malandro". E, a cereja no topo do bolo, o post é acompanhado pela fotografia do Manuel a rir-se com a sua cueca da patrulha pata em condições... digamos... menos próprias. Todo este contexto parece certamente inofensivo, haverá certamente várias reações ao post e muitos e muitos conselhos, mas será mesmo assim tão inofensivo? Então, vejamos alguns números e estudos que foram feitos recentemente acerca do sharenting.
Estima-se que nos Estados Unidos da América, 92% das crianças com idade inferior a 2 anos tenha já algum tipo de presença nas redes sociais, e um terço das mesmas faz a sua estreia com menos do que 24h de vida. São números impressionantes, não são? Um estudo da Noruega, com 817 adolescentes, chegou à conclusão que a grande maioria desaprovava a prática do sharenting, e achava necessário serem estabelecidos limites para a informação que os pais colocavam online. Já na Suécia, um estudo recente de 2020, com 68 crianças entre os 4 e os 15 anos, mostrou que independentemente da idade, as crianças querem que se lhes pergunte, e também que se leve em consideração a sua resposta antes da publicação de algum conteúdo sobre elas próprias. Foi um estudo interessante, em que as crianças classificavam alguns comportamentos entre 1 e 10, do menos para o mais aceitável. O que se verificou foi que "enviar uma fotografia a um familiar" era considerado o comportamento mais aceitável (7), classificando-se na negativa comportamentos como tirar fotografias sem permissão (4), escrever coisas sobre a criança nas redes sociais (3,9) e colocar fotos da criança nas redes sociais (3).
A nossa geração de adultos chega a pais com plenos poderes no meio digital, o que tornou uma prática comum o sharenting. Esta prática tornou-se ainda mais frequente com o início da pandemia COVID, naturalmente encarada como uma forma possível de manter o contacto com familiares e amigos, que de outra forma se veriam afastados da realidade familiar. E sem dúvida que se reconhece a esta partilha a possibilidade de trocar informações, de deixar de se sentir que se está sozinho. Mas afinal, o que pretendem os pais quando fazem o sharenting, e o que os motiva a fazê-lo? Ninguém tem dúvidas que a grande maioria das situações de sharenting são bem intencionadas, e de forma alguma pretendem prejudicar a criança. Um estudo da Universidade do Michigan, de 2014, revelou que 28% dos pais procurava aconselhamento sobre o sono, 26% dicas sobre nutrição e alimentação, 19% sobre questões de disciplina, 17% sobre infantário/pré-escola, e 13% sobre problemas de comportamento. Contudo, 74% destes mesmos pais referem conhecer alguém que partilhou demasiada informação sobre um filho, considerada embaraçosa em 56% dos casos, que permita identificar a localização da criança em 51%, e em 27% dos casos pela partilha de fotos inapropriadas.
Mas afinal, quais os riscos de publicarmos informação e fotografias dos nossos filhos online? Um dos potenciais riscos é o roubo de identidade. Conto-vos um caso, por exemplo de uma mãe que partilhou a fotografia da filha a andar de patins num parque, para mais tarde a encontrar num perfil do Facebook de um homem que se fazia passar pelo pai da criança. Algo que ela, quando partilhou a fotografia, nunca pensou que pudesse acontecer. Outro dos riscos associados é o uso das fotografias para partilha em redes de pornografia infantil, e pedofilia. Vou poupar-vos aqui aos relatos de casos de fotografias editadas e encontradas em redes internacionais, porque nenhum de nós que seja mentalmente são pode pensar que isto acontece, e o que é facto é que acontece. E pode acontecer com os nossos filhos. Por outro lado, há sempre o risco da informação partilhada mais tarde não ser desejada pelo próprio. Ora imaginemos o caso de que vos falei em cima, do Manuel com as cuecas da patrulha pata. Pensem lá no Manuel, com 13 anos, a começar o ano letivo numa nova escola, e a dar de caras com a fotografia dele com 2 anos e meio naquelas poses, no telemóvel de um dos seus novos colegas. Nada agradável, pois não? Pois é, calculo que nem eu nem vocês gostassem de ser surpreendidos no nosso primeiro dia de trabalho com aquela fotografia da queima das fitas em que a bexiga hiperativa regada por uns copos a mais levou a melhor sobre nós próprios, mas a questão é que nós somos adultos, e os nossos filhos não.
Finalmente, já pensaram que quando algum terceiro (a escola, centros de atividades, clubes desportivos) pretendem usar as fotografias dos nossos filhos nos seus sites, é necessária a nossa autorização enquanto pais, porque somos considerados os "guardiões" naturais, e os protetores da pegada digital dos nossos filhos? E também devemos ter um papel fundamental enquanto supervisores no uso que os nossos filhos fazem da internet - estabelecer limites, discutir riscos como o cyber-bullying, ou o sexting, por exemplo. Mas será que seremos sempre os melhores protetores? Está visto que a publicação online de dados relativos aos filhos, intencionalmente ou não, pode ser prejudicial. Podemos argumentar "ah, mas mais tarde vamos dar o poder de veto à criança ou ao adolescente, quando ele tiver idade para entender". Parece-me bem, mas a verdade é que até isto pode não ser suficiente. O que se coloca na internet tem um alcance que temos dificuldade em imaginar. Vejam que motores de busca, como o Google, guardam a informação em "cache" que faz com que anos mais tarde após ela ter sido removida, ainda pode ser encontrada - a possibilidade da redescoberta infinita! E mesmo se isto não fosse assim, bastaria um simples "print screen" para imortalizar um momento que, se calhar, não deveríamos considerar como nosso para imortalizar.
São todas estas questões que me fazem refletir sobre a responsabilidade que recai sobre nós quando decidimos partilhar conteúdos acerca dos nossos filhos. Pode ser que mais tarde eles não se identifiquem com esta pegada digital, e nessa altura poderá ser difícil apagá-la desta verdadeira "aldeia global", se for isso que eles venham a desejar.
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